sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Consulta de Urologia

A bexiga no doente vertebro-medular:

.Para pessoas com lesão medular a bexiga torna-se uma das maiores batalhas a travar. Trabalhando de forma completamente reflexa, principalmente nas lesões mais graves, ditas completas, ela funciona de forma independente face ao sistema nervoso central. Dando-se um corte na passagem informativa veiculada pela medula, gestora de “inputs” e “outputs” captados por todo o sistema nervoso periférico rumo ao cérebro, este deixa de comandar ou de simplesmente deter qualquer tipo de controlo sobre a bexiga. Esta é nada mais que um conjunto de músculos que formam como que uma bolsa elástica que armazena a urina proveniente, e derradeiramente filtrada pelos rins.
.Não será difícil imaginar a aflição, desespero e impotência para um ser humano adulto, ver-se perante o funcionamento de uma bexiga neurogénica funcionando de forma reflexa, sobre a qual não detém qualquer domínio. Isto porque, ao funcionar de forma reflexa, ela enche e esvazia sem aviso ou sensação, ou, pelo contrário, enche e não esvazia, podendo sujeitar a urina a um refluxo rumo aos rins que quase sempre é drástica para o organismo. Esta bexiga neurogénica, “paralisada”, acarreta toda uma nova habituação e treino por parte da pessoa sua portadora, no sentido da aquisição de alguma maior qualidade de vida e regularidade funcional.
.Desde logo o seu esvaziamento. Passa a ser assim chamada toda e qualquer forma de drenagem vesical. Usando dispositivos de várias ordens e tipos, o lesionado medular passa a conviver diariamente com uma série de instrumentos estranhos ao corpo, invasivos e dispendiosos que, correctamente manuseados e aplicados passam a ser um apêndice do aparelho urinário do doente medular.


O contexto:


.Depois de 5 meses permanentemente algaliado em drenagem livre, foi já em Alcoitão que realizei um estudo urodinâmico que mostrou a capacidade da minha bexiga e a ausência de factores que obrigassem à continuidade da algaliação permanente. De imediato me foi dada instrução para começar as algaliações intermitentes. Embora já tivesse ouvido na teoria, no Hospital São José, só agora se proporcionava o avanço para a nova técnica. Não foi muito excitante. Por um lado, todo um novo ritual começava, com sondas, urinóis, lubrificantes, limpezas, etc, por outro, acabava-se a liberdade de ingestão de líquidos. Porque, sem aviso nem sintomas, há que respeitar certos princípios e horários, para que haja a liberdade de realizar esvaziamentos intervalados por algumas horas. É óbvio que conforme um organismo nestas circunstâncias despende muito menos energia, requerendo menos alimentos, também requer menos líquidos. Mas estar a toda a hora preocupado a fazer contas ao que se bebe, sem conseguir perceber ao certo as necessidades e gastos hídricos para se poder estabelecer um certo tipo de padrão, não é fácil. E tudo debaixo do espectro das perdas…
.Depois de durante a permanência em Alcoitão ter feito dois períodos de um mês neste regime (algaliações intermitentes durante o dia e permanente durante a noite) somente interrompidos por infecções urinárias graves, transferi-me para São Brás debaixo desse regime.
.Cheguei a São Brás rotinado com a técnica dos esvaziamentos.
.Após sofrer várias infecções urinárias desde o acidente, umas mais outras menos graves, sendo uma delas, ocorrida em Alcoitão, muito grave, uma vez que além do trato urinário me atacou o trato respiratório, provocando febres altas, espasticidade brutal, expectoração com sangue, princípios de anemia e pneumonia e um período de cama de cerca de 2 semanas, estava já convencido e preparado para prosseguir com o método das algaliações intermitentes, que de todos, é aquele que menos sugere o perigo de infecção.
.Foi com estupefacção que após uns dias em São Brás, numa mera algaliação que estou a preparar para me fazer a mim próprio, me deparo com uma dificuldade anormal em ultrapassar o esfíncter (um dos músculos com “efeito rolha” no funcionamento da bexiga). Nas vezes seguintes essa dificuldade traduziu-se em impossibilidade e quando dei conta já não conseguia fazer algaliações, tal como tinha perdas ao tentar fazê-las! Há medida que se introduziam as sondas e estas entravam em contacto com um esfíncter super contraído, os movimentos persistentes funcionavam como estimulo e a urina começava a sair fora das sondas.
.Claro está que, não me conhecendo, os médicos e enfermeiros daqui do Centro poderão ter pensado que seria eu que não executava bem a técnica. Mas depois de um e outro, e outro, chegou-se à conclusão de que algo estava mal. Não era, de todo viável, ter perdas de cada vez que fazia um esvaziamento, pelo que me vi forçado ao regresso ao uso da algália em drenagem livre.
.Nova infecção foi diagnosticada e medicação iniciada. De qualquer forma, nem eu, nem a maioria do pessoal parecia convencida que o problema se devesse, pelo menos somente, a infecção bacteriológica.
.Imponham-se novos exames. Para começar, o estudo urodinâmico. Após manifesta impossibilidade na primeira tentativa, em que duas médicas, dois enfermeiros e eu próprio, não fomos capazes de introduzir as sondas próprias do aparelho de urodinâmica, foi-me dada medicação específica para a bexiga e o período de algaliação teve que continuar. A conclusão a que se chegou, a bexiga havia se tornado, também ela, extremamente espástica e reactiva!
.Umas semanas depois nova tentativa foi feita. Agora, já na presença de um urologista, e com a medicação certamente a fazer os efeitos devidos, com alguma dificuldade, conseguiu-se realizar quer o estudo, quer uma ecografia. A bexiga havia perdido alguma capacidade desde final de Fevereiro (aquando do primeiro estudo em Alcoitão) e encontrava-se de facto, sujeita a grandes pressões quando certos volumes eram ultrapassados.
.Um dos factos a realçar nesta história é que, por esta altura a equipa médica do CMR Sul já estaria pronta para avançar com uma táctica que me permitisse regressar ao regime preferível das algaliações intermitentes. Mas acedendo a uma vontade por mim expressa de recorrer a um urologista especialista em bexigas neurogénicas, o doutor Paulo Vale, aproveitando ter a companhia de seguros “por trás”, preservaram a situação como estava e rapidamente me endereçaram a uma consulta a Lisboa.
.O meu interesse prendia-se não só com a resolução do problema em questão, mas também, com dúvidas quanto à fertilidade e uma possível colheita de espermatozóides, assim como com a curiosidade em saber mais sobre o neuro-estimulador de controlo de esfíncteres. Aparelho esse aplicado e implantado em Portugal apenas pelo referido médico.
.Havia tomado contacto com este aparelho ainda em São José, e depois de uma enorme relutância em se falar sobre o assunto em Alcoitão, encontrava agora uma oportunidade. Este aparelho, consiste, em termos gerais, num implante que promete fazer as vezes de supositórios, algálias e afins. Através do receptor de ondas eléctricas implantado na zona lombar e com os fios eléctricos que dele saem e vão acabar nuns pequenos eléctrodos, são dadas descargas eléctricas através de um pequeno comando exterior com botões, que vão, por sua vez, provocar o relaxamento dos esfíncteres, quer vesical, quer rectal. Sendo apenas aplicado em casos de lesões completas, eu era um candidato a candidato. Não sabendo ainda pormenores como desejava, à partida, dois grandes contras serão sempre, o preço e, principalmente, o facto de que estes eléctrodos vão substituir as terminações nervosas que emanam da medula na zona das vértebras sacro, tornando este processo, pelo menos por agora, irreversível. Este corte dá-se para que bexiga e intestinos deixem de receber qualquer tipo de estímulo e reacção que não a vinda do aparelho. Para que ambos os esfíncteres funcionem somente à ordem do aparelho.


A consulta:


.Custando 90 euros a consulta mais 550 euros o transporte de ambulância, dia 25 de Julho lá vou eu. Acompanhado de um enfermeiro do Centro e conduzido por dois bombeiros, chegamos à hora prevista.
.A consulta acaba por ser um pouco decepcionante. Como todos sabemos é já muito difícil nos tempos que correm, apanharmos médicos que realmente tenham tempo e vontade de nos ouvir e que se preocupem verdadeiramente com o doente. Neste caso aconteceu a situação de me dirigir a um médico de renome, muito concorrido e com a agenda cheia. A consulta durou 25 minutos.
.De forma muito pronta, após observar os exames e as cartas enviadas pelos colegas do Centro, concluiu e sugeriu que passasse a usar Instilagel (um gel anestésico e lubrificante) de cada vez que fizesse uma algaliação. Claro que sem me tocar, acabei por ter que questionar “mas doutor, será que funcionará?!”, ao que me respondeu de forma convicta e altiva “se funciona com todos, também funcionará com o Pedro”…
.O assunto da fertilidade e uma possível biopsia para crio-preservação foi rapidamente refutado na sua opinião uma vez que, querendo avançar para uma paternidade, então, na altura, exames e colheitas se fariam de forma mais “fresca”…
.Assim que abordo a questão do neuro-estimulador, a conversa muda de teor. Sou novo, estou a ser custeado por uma seguradora, sou candidato a candidato! No entanto, pormenores corriqueiros e dúvidas simples sobre o funcionamento do sistema, não me são explicadas porque “em vez de lhe estar com conversa de médico que não vai perceber nada, dou-lhe o contacto de dois ou três dos meus doentes, que sei que não se importam, e o Pedro esclarece as dúvidas que tiver”. Muito bem, o problema foi que ali (no Hospital CUF Descobertas) não tinha os ditos contactos.
.Este doutor executou até 2005 52 implantes em Portugal. Parou por altura do pico das experiências com células estaminais do doutor Carlos Lima na expectativa de ver o que daria. Constatando-se que o caminho não será por ali, está, agora, disposto a retomar a técnica. Disse-me ter uma taxa de sucesso na ordem dos 80%. Falou-me de dois ou três casos que correram mal, mas assegurou-me que os seus doentes falariam por si!
.A sua sugestão foi que voltasse em Setembro para começar a realizar uma série de exames pela sua mão, que me poderiam passar da situação de candidato a candidato, a verdadeiro candidato.
.Claro que o rescaldo desta consulta, a quente, foi negativo. Só uns dias depois comecei a constatar que não só estava certo como sabia do que falava. Quanto às algaliações, fruto dos efeitos da medicação já com cerca de dois meses, mais o tal Instilagel, voltei a conseguir realizá-las. Quanto aos demais assuntos, seria exagerado pensar que em meia hora se conseguissem esclarecer ou obter estratégias claras.
.A questão da bexiga “indomável” e respectivas algaliações ficou, por hora, resolvida. Já das constantes e recorrentes infecções urinárias, nem ele nem ninguém me poderá livrar…
.Os restantes assuntos ficarão para próximas oportunidades.


O melhor de tudo:


.Tendo sabido da marcação da consulta com três dias de antecedência, não deu para grandes preparativos. Além do mais, era ir e vir. Foi, por isso, com grande surpresa e entusiasmo que ao desembarcar da ambulância perto da entrada do Hospital, constato a presença dos meus amigos Augusto (Mor dos Lysos), João Duarte (meu tio emprestado) e a Joana (amiga de longa data), que me esperavam para grande surpresa minha. Sem saber, a minha mãe na certeza de que tais pessoas fariam gosto em me ver, dois meses depois da minha saída da sua zona, Lisboa, avisou-os de véspera via telefone.
.Suscitou em mim uma confiança e regozijo enormes por ver aquelas três pessoas à minha espera de braços abertos!

Sem comentários: