.E de repente passaram 13 meses de reabilitação. 13 Meses da minha vida. Tanto tempo… tanto tempo.
.Quão pesada se torna a pena a pagar ao cair numa armadilha assim! Serve todo este tempo para sarar uma ferida que jamais fechará. Para mostrar ao ser humano, que pelo facto de o ser, se pode afortunar de ter capacidade para se adaptar e, ainda assim, viver. Trata-se de um processo muito difícil de aceitar e receber. Muitos não o querem. E muitos, em situações ainda piores, não estão em condições de o quererem…
.Entrei no CMR Sul a 19 de Maio de 2008. Era o momento certo para a viragem. Encontrava-me fragilizado como nunca. Num momento de incompreensão irracional do meu próprio ser que me fazia muitas vezes não me querer reconhecer a mim próprio. Como se estivesse num estado de resignação vegetativa…
.Não me esquecerei daquele dia. A forma como o Algarve me recebeu 8 meses depois. Pelo canto da janela da ambulância ia vendo traços do percurso que me faziam saber onde estava, automaticamente transportando-me para memórias guardadas de tempos idos. O percurso dos ciprestes, naquela curta e estreita recta, que faz a entrada ao CMR, impressionou-me. E assim que abriram a porta traseira da ambulância, ao ouvir o som dos pássaros em Primavera, senti a calma e a leveza do ar no local e algo dentro de mim tranquilizou.
.Após consulta introdutória foi-me definido um plano de tratamento. Desde logo, a calma e serenidade do local, das instalações e do pessoal, foram factor notório. Confesso, que inicialmente, me senti algo aborrecido e melancólico, tal era a pacatez da envolvência. Depressa conclui que se tratava do cenário ideal para quem se queria entregar de fundo a um programa de reabilitação física.
.Como sempre, tardei um pouco a abrir-me o suficiente e a dar-me a conhecer mais profundamente, apesar de todo o carinho que desde o inicio recebi de toda a gente. No entanto, assim que fui travando conhecimento quer com os técnicos, quer com os doentes, a situação alterou-se drasticamente.
.Uns dias depois conheci a Directora Clínica do Centro no ginásio, onde não é raro encontrar médicos. Mostrou de imediato um interesse especial pelo meu caso (que pude confirmar, ser afinal, geral por todos os doentes). Foi determinante tal força e interesse, pois muitas das vitórias burocráticas que tenho conseguido frente à seguradora de trabalho e a nível geral, devem-se a ela. Verifiquei com o tempo, a forma dinâmica, pró-activa e humana com que esta directora dirigia uma Instituição Hospitalar tão importante para os doentes, como é um Centro de Reabilitação. Bem como a forma como se rodeava de pessoas de características semelhantes. Foi uma diferença abismal e um factor extremamente positivo na minha recuperação. Aliás, o corpo médico pela forma como se comporta e como trata e aborda os doentes, faz uma diferença fundamental!
.Os primeiros dois meses foram difíceis, a bexiga atravessava uma fase problemática, fazendo-me regredir para um processo de algaliação em drenagem livre, quando já me ia habituando às rotinas de algaliações intermitentes. Ainda por cima, tive vários episódios de perdas por extravasamento. Era frustrante andar de “saco” e ainda assim ter perdas! Esta situação condicionou-me extremamente. Para não falar da parte psicológica, impediu-me de usar a piscina e experimentar as técnicas de hidroterapia, desígnio a mim destinado desde o inicio. Ao contrário de Alcoitão, aqui, todos vão à piscina… À parte da bexiga, inexplicável e imprudentemente, criei uma ferida num calcanhar, ao fim de uns dias no Centro, que me valeram 3 meses de pé ligado, tratamento específico à ferida em questão, e tudo o que ela acarretava.
.Creio que os infortúnios dos primeiros tempos fizeram de certa forma adiar o inevitável. Desde o inicio que estava latente naquela equipa jovem, de enfermeiros e terapeutas, o espírito combativo e de incentivo, motivação e abnegação, de que tanto precisam este tipo de doentes. Foi quando a bexiga acalmou, graças à abertura e busca de alternativas pela equipa médica, e quando a ferida fechou, graças ao empenho e rigor da equipa de enfermagem, que eu comecei a sentir essa “raiva profissional” a tocar-me na pele.
.Tal era o trabalho dos profissionais que a meio do internamento eu já fazia coisas que havia visto, e julgado jamais ser capaz de fazer! Vitórias atrás de vitórias, entre o ginásio, a enfermaria, o gabinete de psicologia e o de terapia ocupacional, que me fizeram chegar a um nível de auto-controlo motor, fisiológico e psicológico, que me fizeram passar a ver, definitivamente, a vida com outros olhos. Pelo meio fui buscar a auto-confiança essencial para uma recuperação destas. Se as pessoas conseguissem imaginar o quanto se altera no processar de uma vida, ao enfrentar este tipo de mudança… fariam ideia do que uma recuperação a todos os níveis pode demorar, custar e doer…
.Depois de experimentada a água, enfrentados os demónios da sexualidade, de me preparar para a obtenção de postura e de integração social. Adquirido inúmeras habilidades motoras e de domínio da cadeira de rodas, graças a muitas horas de fisioterapia e terapia ocupacional. Depois de ter conseguido estabilizar os sistemas de treinos vesical e intestinal e sobretudo, ter aprendido a solucionar de formas alternativas, uma série de problemas que estes mesmos treinos me poderão levantar para sempre. Estava em Outubro, ao fim de 4 meses, preparado para uma alta que me devolveria pela primeira vez à realidade!
.Não descorando nenhum aspecto da minha alta, o Centro manteve-me internado mais um mês, para que as obras de adaptação de minha casa se concluíssem. Obras essas, uma das vitórias conseguidas, em grande parte graças ao empenho e dedicação da Directora Clínica do Centro, em representação dos direitos do doente.
.Embora acusando já um cansaço e um anseio pela “liberdade” que me faziam enfrentar os tratamentos de forma mais desleixada e tendo por vezes uma atitude demasiado ansiosa perante as situações, sempre fui tratado com condescendência e compreensão.
.Vários pormenores e lembranças me ficam, em particular, na memória. Mas posso resumir tudo a um sentimento mais amplo emanado por todas as pessoas daquele Centro no momento da minha saída. Amizade. Ver a forma como se despediram de mim, auxiliares da acção médica, enfermeiros, terapeutas, médicos… Todos eles tão importantes.
.Duas promessas ficam: eu voltarei, e jamais vos esquecerei.
.Tudo, desde o primeiro dia após o acidente, contou para eu ser o que sou hoje. Enfrentar a lesão medular como enfrento. Encarar a vida como encaro. E acreditar que posso melhorar em todos os aspectos.
.Mas cabe-me aqui um MUITO OBRIGADO ao CMR Sul.
Na foto: a maltinha do CMR! Guardados pelo Enfermeiro Joel, estão algumas das pessoas que conheci em situações de dificuldade. De alguns fiquei bom amigo. A todos, unido por um vínculo de cumplicidade e solidariedade únicos.
quarta-feira, 1 de abril de 2009
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