sexta-feira, 1 de maio de 2009

Concerto de RATM em Oeiras

Foto 1: Se chegar aqui não foi fácil, sair então...


O Plano:

.Enquanto havia dias assustadores que passavam por mim de forma desordenada e sem sentido, vazios, desprovidos de qualquer desejo, objectivo, vontade ou sentido de orientação, que iam ficando gravados em mim como feridas que se acumulavam num corpo que estava agora parado, desavindo com o mundo, comportando-se de forma irracional e aleatória… outros havia em que por força de um amigo, de um semelhante, de um profissional ou de um qualquer lugar profundo dentro de nós, que nos faz acreditar e ter capacidade de lutar, era, a espaços, capaz de vislumbrar um futuro, e até projectar alguns planos.
.Foi numa tarde assim que, visitado em Alcoitão pelo Quintino, comecei a sonhar ir ver um concerto. Haveria de ser o primeiro de muitos... Seria “Rage Against The Machine”, inserido no “OeirasAlive 08”, em Oeiras.
.Um aspecto que muito me impressionou foi a forma positiva como sempre me visitou e encarou a minha situação. O Quintino, desde o primeiro momento introduziu aquele diálogo espontâneo e sincero “como é que é ganda Pedralves, isso agora é prá frente”. Progressista. A imprimir confiança e positivismo. Foi uma pessoa bem presente, que muita força me deu durante os meus internamentos. Apareceu-me do nada… entrou e ficou.
.Quando uns meses depois em Junho, já internado em São Brás de Alportel, me comecei a lembrar daquele sonho que havia tido tempos antes, um nervoso miudinho começou a instalar-se no meu estômago! A verdade é que me havia mudado há pouco tempo para o Algarve. E feitas bem as contas, tirando o 25 de Abril (com o “Pentagrama”) e várias saídas curtas enquanto estive em Alcoitão, não tinha mais quaisquer tipos de experiências no exterior. Até mesmo a minha casa me era estranha. A essa altura ainda me via muito limitado nela, e sem dúvida que ainda não usufruía do prazer de estar em casa. Os poucos fins-de-semana que eu lá havia ido ainda de pouco valiam.
.Surgiu em conversa com o Tiago numa tarde de ginásio. O Tiagão, um verdadeiro amigo que fiz no CMR Sul, muito antigo nestas andanças de deficiências graves, é grande fã de RATM, de Rock, de Música no geral. Ao saber que eu tinha apalavrado com um amigo a hipótese de ir ver o concerto, ficou extasiado, dando-me só por si muito mais ânimo e vontade de ir.
.Se eu havia colidido com uma parede, começando aí do zero quanto à aprendizagem e conhecimento do meu próprio corpo e fisiologia, e recomeçando quase do zero um projecto de vida, com novas aspirações, experiências sociais, afectivas, etc… O Tiagão estava desde a nascença acompanhado por uma má-formação congénita que lhe deu uns braços mais curtos que o normal, e acompanhado por muita negligência que o deixou, ainda por cima, após várias operações, com uma perna em muito mau estado, após ter sofrido uma queda em pequeno. Tendo conhecido toda a vida a dificuldade, o obstáculo, o constrangimento de se sentir preso, pelo seu próprio corpo, por tudo o que o rodeia, ele sabia bem dar valor aos prazeres da vida. Aos momentos em que nos esquecemos que somos deficientes, e onde fica apenas o sabor de ser humano.
.Estes condicionalismos faziam desta ida a Lisboa para um concerto, a primeira vez do Tiago. Oh a primeira vez! Como eu me lembro…
.Uns dias antes o Quintino disse-me que mais pessoal se perfilava, pelo que deixei o Tiago em suspenso. A hipótese de ir o Quintino, mais pessoal e eu, já por si me assustava, ainda mais indo só com o Quintino. Esse receio, embora partilhado, seria, ainda assim maior da minha parte do que da do Quintino. E era pertinente. Ele jamais havia lidado de perto com a infelicidade de acompanhar um amigo paraplégico e eu, nunca tendo sido paraplégico, enfrentava uma lesão medular há pouco tempo, não dispondo nem de conhecimento nem de confiança para a situação. Da primeira vez…
.Quando à medida que fomos limando as arestas da nossa ida a ver “Rage Against The Machine”, introduzi ao Quintino o facto de ter convidado um doente que estava comigo internado, a ir connosco ao concerto, já havia calculado a possível reserva do Quintino quanto à ideia! Na verdade, de repente punha uma pessoa que não estava familiarizada com deficiências, a levar e cuidar de 2 deficientes (1 desconhecido) a um concerto a 300kms de distância! Eu, numa fase de dependência ainda bastante elevada, em pleno processo de recuperação e reabilitação. Com condicionalismos como uma escara num calcanhar, mas sobretudo, ainda muito pouco confiante e à vontade. O Tiago, completamente independente, mas com uma locomoção extremamente lenta.
.A verdade é que nas vésperas apenas parecia restarmos nós os três. O Quintino (com 2m de altura e 1m de “rastas”), o Tiagão (com 1,49 e uns braços tamanho “S”), e eu (o “moicano” de carroça de rodas). Éramos um número de circo!
.Estava feito. O dia chegou, não sem antes eu e o Tiago assinar-mos os nossos termos de responsabilidade de alta do internamento, que nos concedia um período de 16 horas para irmos e regressarmos após o concerto, conforme pedido. Trabalhar na nossa (minha) reabilitação social…


Foto 2: Não dispondo de "material de reportagem", foi o pequeno telemovel do Cajó que serviu para os registos para a posteridade. O Quintino ainda tirou umas fotos da jornada, mas de nada valeram, a partir do momento que a câmara deixou de estar sob a alçada do gigante!

A ida:

.Fazendo-se valer de uma mobilidade extremamente lenta, e uma vez poder vir a enfrentar a hipótese de grandes caminhadas, optamos por levar também uma cadeira de rodas para o Tiago. O que deixava o Quintino com uma cadeira em mãos e outra debaixo de olho. Uma vez que o Tiago, não chegando com as mãos às rodas, não se podia auto-propulsionar, e eu, tendo em conta que era tudo menos um condutor experimentado, exigia vigilância e auxílio permanente.
.Com os atrasos da ordem, lá estávamos prontos para abalar por volta do meio-dia. Foi curioso após entrarmos para o carro, uma “StationWagon” antiga, ver o Quintino a fazer uma enorme ginástica para conseguir acomodar na sua espaçosa mala, duas cadeiras “XL” mais a parafernália de objectos de praia que já aí trazia. Não esqueçamos que o tempo era bem quente. Estávamos em Julho no Algarve!
.O plano passava por seguir calmamente (como aliás é apanágio do Quintino, do Tiago e da própria situação que imprimia um ritmo descontraído), pela nacional e chegar ao Barreiro a meio da tarde. Apesar de serem só os “Rage” que nos chamavam, a perspectiva de apreciar um bom dia de festival e espectáculos, faziam-nos querer chegar a boas horas ao recinto.
.Aqui entravam as minhas limitações. E não esquecendo que sendo ainda uma fase muito precoce da minha recuperação, temia por tudo. Desde logo, das perdas. Intestinamente ainda incerto, e apesar de ser pouco provável, a hipótese de uma perda num local e momento menos oportuno, amedrontava-me. Vesicalmente, apesar de algaliado em drenagem livre, “com saco”, não seria a primeira vez que mesmo assim me molhava! Havia também a questão do rabo. Seria a primeira vez que iria passar tanto tempo em cima dele, seguido. Pelo que optamos por, chegando ao Barreiro (onde o Quintino dispunha de casa), pararmos por um bocado, lanchar, e descansar um pouco o cú de tanta pressão! Perderíamos as primeiras actuações. Nada com que não conseguíssemos lidar.
.A sensação ao passar pelo arruamento ladeado de ciprestes à saída do CMR Sul, foi de evasão e liberdade, mas também de desafio e perseverança.
.Para quem conhece a estrada, poucos minutos depois de entrarmos na Via do Infante, descemos a recta de Loulé, depois do túnel e… Bong!! Um enorme estrondo se ouve imediatamente seguido dum desgovernar do carro, como que com vontade própria, atirando-nos forçosamente em direção do “rail” protector direito. O Quintino de pronta resposta e com mestria, esforça-se por segurar o carro e com trabalho de caixa, ir, paulatinamente reduzindo a velocidade. Conseguimos fazer a descida (quase toda) numa trajectória mais ou menos recta, e acabar por imobilizar o carro precisamente no “triangulo” separador da saída para Loulé.
.Bom, começamos bem. Uma da tarde e lá sai o Quintino, equipa-se de colete e vai, debaixo de um sol abrasador, desmontar todo o puzzle que havia construído na sua bagageira, onde agora precisava de resgatar o pneu sobresselente. Sem grandes sobressaltos, fascinou-me logo o à-vontade e naturalidade com que aquele homem enfrentou a situação. Não pela parte técnica da mudança de pneu, mas mais pela completa desvalorização que deu à situação, não deixando que esta lhe belisca-se o que fosse na sua boa vibração. Para mim, nos velhos tempos, teria sido suficiente para, pelo menos, me azedar um pouco as intenções…
.Ia eu tentando parodiar com o Tiago dentro do carro “Já viste? Parecemos duas crianças com o pai. Que teve um furo, e as criancinhas ficam quietinhas dentro do carro”. Tal era a sensação de impotência sentida… Nunca eu, enquanto adulto, me havia visto ou imaginado em tal posição…
.Entre o silêncio, dava voltas à cabeça não querendo crer como tal remota hipótese nos havia calhado a nós! Rebentar um pneu não acontece todos os dias! Abalava eu para a minha primeira aventura no desconhecido (era o que era na altura) e rebentava um pneu passados 15 minutos na estrada?! Reduzindo ainda mais as hipóteses de tal acontecer, o Quintino, filho de um mecânico automóvel acreditado, havia procedido a minuciosa revisão ao carro, com o seu pai, na véspera.
.O que valeu foi irmos a 100km/hora e não a 200, irmos precisamente numa recta (descida) em auto-estrada, mas principalmente, o sangue frio do Quintino.
.Para recompor da situação paramos logo a seguir, na estação de serviço de Loulé. Os planos ficaram desde logo alterados, pois achamos por bem parar em Albufeira, e carregar novo pneu.
.Uma vez no carro, aguardando pelo Quintino, fomos vendo quem vinha e ía, e gozando um pouco com a situação. Quem diria que em 10 minutos parados em frente à loja da gasolineira veríamos vários grupos de acidentados? Três amigos que, pelas t-shirts que usavam e o estilo que aparentavam, tinham ar de ir com o mesmo destino que nós. Um deles, pé ligado e muletas! A senhora baixa e larga coxeando por ter uma perna maior que a outra… A família espanhola composta por pai, mãe, filho/namorado da filha e filha/namorada do filho que após sair da loja rodeou o carro, trocou de posições, arrumou, tirou, pôs, para no final ser o pai, com um braço engessado e pendurado ao peito, a fazer-se ao volante!
.Rumamos a casa do Quintino, no Páteo, Albufeira, e depois de contarmos o que nos havia sucedido, e trocado o pneu, lá nos pusemos tranquilamente (com uma ou duas horas de “atraso”) de novo ao caminho. Já optamos pela auto-estrada para tentar recuperar um pouco de tempo perdido.

.“Serviu a viagem para um reforço e concretização de ideais de camaradagem, companheirismo e amizade.” (Tiago Inácio)

.Sempre com aquele pretenso “atraso” atrás, chegamos ao Barreiro, apanhámos comida e lá fomos para o apartamento T3 “XL” do Quintino. Não fosse este apartamento albergue de três jogadores de Basketball!! Ainda ficamos em casa enquanto o Quintino aproveitou para sair e tratar duns assuntos. Por esta altura outra pessoa se prepara para entrar em cena. Sabendo que o Cajó, meu amigo de longa data, andava lá por cima em andanças parecidas, não enjeitei a possibilidade de o desafiar. O Cajó tinha estado no “SuperBock” na véspera com o Bernardo e o Pardal. Tinha pulseira para este último dia também, mas ficando sozinho uma vez que o Bernardo e o Pardal tinham que regressar, optou por abdicar. Desde logo ficou combinado que em vez de descer nesse dia, ficaria por lá mais uma noite e juntar-se-ia à ida aos “Rage Against The Machine”. Combinamos encontrarmo-nos no festival depois de jantar.
.Por volta das 9.30 lá aparecemos por Alcântara/Algés e deparamo-nos com a confusão. Após umas voltas à ultima rotunda possível do trajecto de carro, começamos a nossa relação com a PSP… Abordamos dois agentes que controlavam o trânsito e pedimos que nos deixassem atravessar a barreira para que pudéssemos “descarregar” mais perto. Autorizaram mas na condição de que o Quintino regressasse e estacionasse lá a uns Kms onde houvesse lugar! O lugar que encontramos era ideal. Mesmo à entrada!
.Entretanto o Cajó, que já lá se encontrava, apareceu e ajudou na tarefa de montar a equipa com toda a panóplia de materiais, cadeiras, mochilas, etc… Agora não podíamos desperdiçar este luxo de ter conseguido deixar o carro à porta do recinto. Era bom demais. Dois agentes perscrutavam atentamente os nossos passos. Haviam provavelmente sido os que tinham sido contactados momentos antes, via rádio, pelos parceiros que ao nos terem deixado entrar, referiram o facto de haver “v” de volta. Mas com charme e astúcia pedimos aos agentes que nos permitissem ficar ali, o que não foi muito difícil, a partir do momento que nos viram sair do carro! PSP 1 – Malta 0.
.10 horas. Hora ideal para entrar! Com os “RATM” a aparecerem por volta da 00.30h, tínhamos ainda tempo para umas voltinhas a ver quem passa! Sem filas nem apertos compramos 3 bilhetes para mim, para o Tiagão e para o Cajó. Faltava o do Quintino. O Quintino havia ganho um bilhete através de um passatempo “Blitz” e supostamente teria que trocar o “voucher” pelo bilhete até às 8,30h. Sabendo que não chegaria a tempo, telefonou para o número disponível, de onde foi informado que não haveria problema, pois quando chegasse bastaria ligar para um telemóvel e a responsável, uma vez dentro do recinto, viria à porta trocar o bilhete.
.Esta última parte não correu bem assim…
.Depois de alguns (bastantes) telefonemas para o dito número, resolvemos ir novamente à bilheteira com novo assunto. Desta vez a resposta foi outra! Com total desprezo pela situação a menina do “guichet” respondeu-nos que não haveria muito a fazer, uma vez que o passatempo nada tinha a ver com a organização! Insistimos. À 2ª já chamou um “superior”, que com a mesma sagaz ironia agiu do estilo “quer entrar, tem que comprar bilhete”!
.Com o tempo a passar, apercebemo-nos de que a porta “VIP” era mesmo ali ao lado das bilheteiras. Como quem não quer a coisa, lá foi a “turma de circo” em direcção a esta porta no sentido de abordar o porteiro ou alguém com a influência e o interesse suficientes para desbloquearem a situação. E eis que surge um salvador! Trata-se do porteiro “Pipoca”, como preferia ser chamado. Cinquentão, barrigudo, era homem do espectáculo, habituado a estas andanças. Não conseguindo ficar indiferente a tão singular grupo de personagens, começou de imediato a contactar via rádio para encontrar a “chave do problema”. O Quintino já desesperava, considerando comprar um bilhete e abdicar do passe, simplesmente para entrar! A malta apelava à indignação e à defesa dos nossos direitos! Depois de muita insistência, conseguiu via telemóvel, apanhar um dos organizadores que acabou por simplesmente dizer que desse um bilhete ao senhor. Já antes, a malta, acompanhada pelo “Pipoca”, havia ido às bilheteiras tentar simplificar a questão. Mas renitentemente o pessoal das bilheteiras não queria assumir a responsabilidade. A diferença foi que agora este telefonema foi feito ali na presença de toda a gente e com o telemóvel de serviço da bilheteira. Com toda a convulsão o Quintino acabou por nem entregar o “voucher” e depois de receber o bilhete e agradecer ao “Pipoca”, seguimos rapidamente para a porta principal/geral.
.Era meia-noite. Na porta principal já não havia reboliço. Já toda a gente havia entrado! Por momentos pensei que cadeiras de rodas, mochilas e ajudas técnicas como as que o Tiago trazia em mão, ainda fossem levantar suspeita. Falo de 2 ferros com cerca de 40cm cada, com os quais ele obtém uma espécie de extensão de braços, para tarefas rotineiras como baixar as calças. Um homem numa cadeira de rodas, com dois braços pequenos, envergando em cada mão um ferro em riste, na direcção do respectivo porteiro/ponto de revista, não é uma visão muito normal… O Cajó empurrou uma cadeira por uma linha, e o Quintino empurrou a outra numa linha paralela. À boa maneira portuguesa, nem cadeiras, nem deficientes, nem acompanhantes. Ninguém é revistado. É sempre a andar, que o concerto está a começar, e a malta está farta de aqui estar há 4 horas a rasgar bilhetes e a perscrutar mochilas! Apesar de deficientes acompanhados por dois jovens amigos, até podíamos ser dois deficientes criminosos e entrarmos armados para descarregar a nossa fúria na sociedade! Mas é também esta compaixão, comodismo, desenrasque, que faz de nós Portugueses/Latinos sermos o que somos…
.Tocavam os “The Hives” quando demos os primeiros rodados dentro do recinto. De certo, deu-se o deslumbre com a imponência do local e das actividades. No meu caso, não fosse ser a primeira vez que entrava num recinto de um festival com menos 50cm de altura! A contemplar o mundo exterior de uma nova perspectiva…
.Depressa procuramos a localização do palanque para malta com deficiência e problemas de mobilidade. Havia contactado previamente a organização do evento para me inteirar das condições e acessos do local. Foi uma surpresa agradável ver uma plataforma com capacidade para umas dez cadeiras, bem situada, a uma distância do palco idêntica à da mesa do “P.A.”, de fácil acesso (com a ajuda de uma mãozinha), “WC`S privativas”, e guardada por um “steward” atencioso. Já estava preenchida. Vários indivíduos com dificuldades diversas. Havia o anão careca de calças de cabedal, o tetraplégico espanhol fervorosamente absorvendo o rock, malta de pernas engessadas, 2 paraplégicos muito mal dispostos, algumas falsas deficientes penetras (muito giras), enfim, bom ambiente!
.Assim que estacionamos e montamos a base, começamos em contagem decrescente para “Rage”! Enquanto o Cajó, algo avesso a “Rocks” e muitas confusões, ficou pelo palanque connosco, a conhecer o som, a apreciar o espectáculo e sempre atento à oportunidade…o Quintino, com mais dois amigos, foi para o melhor sítio para se ver um concerto. No meio da pista, a 15 metros do palco!
.Neste compasso aproveitei para dar um toque ao Sérgio “Griff”, com quem havia combinado encontrar-me assim que entrasse. Com o Sérgio havia “combinado” da mesma forma que com o Quintino, meses antes ainda em Alcoitão. Mas quando o sonho se tornou realidade e, já no Algarve, combino mesmo a ida com o Quintino, fi-lo saber ao Sérgio. Falamos já no dia do concerto e poderíamos ter-nos encontrado mais cedo, não fossem os atrasos! O Sérgio Rodrigues, apesar de ser um velho conhecido dos tempos do Campismo, e de ser, o namorado da Susana Griff há muitos anos, era alguém de quem eu, pelas circunstâncias da vida e pelo progressivo afastamento de Armação de Pêra, estava afastado. Dizem que é na prisão e no hospital que se vêm os amigos. Quem profetizou tal ditado devia estar certo. O apoio e a presença constante do Sérgio à minha cabeceira de hospital…só podem ser indício de duas coisas: de um ser humano bom e de um ser humano que nutre uma amizade sincera por mim. Talvez agora veja mais claramente, que tais qualidades perto de mim são um bem inestimável…
.O Sergão, como bom roqueiro que é, cumprimentou a malta, deixou as trouxas entregues na base e, ala que se faz tarde! Não dá para ver os “Raiva Contra a Máquina” de um palanque tipo “observatório de pássaros”!
.Infelizmente não poderei descrever a actuação dos “Rage Against The Machine” em grande pormenor, uma vez que à data deste relato, a memória me atraiçoa quanto a detalhes. Digo mesmo assim, que a banda não deveu absolutamente nada do ponto de vista técnico. Tirando um ou outro “prego” e “desacerto”, os gajos tocaram um Rock do c****o! Com atitude e vontade, descarregaram temas numa sequência bem encadeada. O som estava bastante nítido, e ver o Tom Morello na guitarra… Grande som! A música deles faz tanto sentido ao vivo! E ver e ouvir o Zack ali à frente a dizer muitas das coisas que diz… É pena ter sido vez sem exemplo, pois é banda que via sempre que pudesse.
.Concluí desta vez, e de forma permanente, quais os dois aspectos que verdadeiramente me decepcionam neste tipo de concerto. Aberto, estilo “open- air”, festival, em grande.
.Sendo recintos tão grandes (neste caso urbano…), onde se junta tanta gente a ouvir a mesma música, em frente a palcos gigantescos com “sets” de colunas brutais, não compreendo como não se providencia melhor som de retaguarda?! Claro que havendo outros palcos no recinto, o problema da sobreposição teria que ser sempre salvaguardado, mas no palco principal, que geralmente funciona em anfiteatro, não compreendo como a 40 ou 50 metros do palco duas pessoas já falam sem esforço como se estivessem num bar! O som é para entrar! Não haja medo do que os espanhóis chamam de “desfaze total”, porra. São só mais umas colunas e o pessoal é muito mais absorvido pelo concerto/actuação/música/ambiente. Até é capaz de beber mais umas “super-bock”!
.A maior e fatal crítica que faço, é à essência do próprio evento. 2009, Planeta Terra. Mundo Global, Capital, Bestial! Do ponto de vista comercial, económico e funcional, faz todo o sentido o grande festival, as grandes concentrações, a uniformização… Num recinto suficientemente grande capaz de albergar uma variedade de atracões e diversões, que funcionam como chamarizes, entre as diversas actuações musicais divididas por vários e diferentes palcos, ladeados das tradicionais barracas dos principais “sponsors”/”promotores”/”exploradores” do negócio, o “festivaleiro” vem sob o apelo da música, mas acaba por ser apanhado na teia do fast-food, imperial a 1euro e completo alienamento face à variedade de distracções… As bandas, no meio do consumismo, tornam-se um extra. E os que vieram para ver uma, não se interessam pela outra, ou às tantas, já são tantas bandas, que nem se lembram de qual os trouxe ao festival!
.As bandas, por sua vez, não será de censurar, sem alternativa, rendem-se à rota dos festivais e tocam para 30 ou 50 mil com 35% de interessados/conhecedores/apreciadores, em vez de fazerem a clássica digressão própria (em vias de extinção) e tocar para 10 ou 20 mil fãs. Uma Banda como os “Rage Agaisnt The Machine” deve ressentir-se disso. E os apreciadores ressentem-se disso. Não dá lugar à construção daquela atmosfera de empatia e envolvência público-artista! Onde o pessoal canta as músicas, o artista comunica, transmite mensagem, etc…
.Ainda assim, bem cientes do que estava em jogo, os "Rage" tocaram um “so long Europe” com 2 “encores”, muita entrega e uma duração total a rondar as 2 horas!

.“Foi, sem dúvida, momento de adrenalina, êxtase e diversão. Concerto bombástico, “Rock`n`Roll”. Momento de completa alienação face às limitações de carácter físico ou questões de índole psicológica. Completa sintonia com o meio e indiferença face às possíveis ajudas ou barreiras que pudessem surgir ou necessitar. Concentração máxima no objectivo proposto, ver “Rage” e desfrutar o momento, CARPE DIEM!” (Tiago Inácio)

.No calor do concerto, quem é que aparece furtivamente para me dar um toque pelas costas? Empoleirado na estrutura metálica de suporte do palanque, com um sorriso afável e alegre, aparece o “Grande Duque de Albufeira”. Acompanhado do André, o Duque, aterra ali de “pára-quedas”, para ver o resto do concerto com o pessoal!
.O Cajó ao prescindir da pulseira do “SuperBock” para o último dia (Mika, etc), deu-a ao Duque e ao André, que já contavam com a do Bernardo e a do Pardal. Estes, na perspectiva de ver uns concertozinhos à borla e curtir um pouco, lá foram rumo ao “SuperBock”. Mas ao serem detectados com pulseiras coladas, foram barrados e não passaram da porta! Resolveram então rumar ao “OeirasAlive” e esperar pelo final do concerto para nos surpreenderem à porta com a sua visita. Plano furado! Quando chegaram às imediações já “Rage” enraivecia a multidão. Sentaram-se perto da porta, quando foram furiosamente interpelados por um membro da “Crew” dos “RATM” que lhes ordenava de bilhete na mão: “Ticket, GO, GO!”, “Ticket, Ticket, GO, GO, GO!”…
.Acabado o “Show de Rock”, novo episódio de “azar”! O Sérgio regressa à base extasiado com a performance dos “Rage”, enquanto pouco depois, chega o Quintino com os 2 amigos, extasiados com a performance dos “Rage” mas com umas expressões que, denotavam também, alguma apreensão. “Foi pena ter-nos ficado caro…”! Haviam voltado do meio da pista completamente despidos de pertences pessoais!
.Acontece que ao final da 1ª ou 2ª música, uma das mochilas por eles usada, e que congregava os pertences do Quintino e de um dos amigos, havia sido violada. Embora se tivessem apercebido pouco depois, já nada havia a fazer, não sendo possível concluir se a mochila foi aberta acidentalmente e os bens recolhidos do chão como grãos por uma galinha, ou se haviam sido vítimas de um “fura-mochilas”! Claro está, não fosse o Quintino o principal lesado, e resignadamente continuaram a desfrutar do concerto, deixando as preocupações para depois, perante a evidência do inevitável. Por momentos ainda rebati furiosamente, até me aperceber que parecia estar eu mais revoltado e indignado, do que propriamente eles. De qualquer forma não (me) perdoei o esquecimento/ingenuidade/distracção de se levar mochilas para o meio da pista, depois de ter outra parte do grupo confortavelmente instalado em sítio seguro. Assim como, tê-las cheias de pertences! Resultado, o Quintino perdeu o telemóvel, a carteira + 100e, todos os documentos e uma máquina fotográfica no valor de 300e, emprestada, pelo que, é sabido o que acontece a quem perde…paga!
.Engolimos o “caroço” e resolvemos ir dar um passeio pelo recinto. Desde logo insisti para a necessidade de reportar o incidente às autoridades e assim obter uma declaração/participação de extravio de documentos. Outra questão que se levantava por estas horas era, de decidir se regressaríamos de imediato como havia ficado pré-estabelecido, ou se descansaríamos umas horas no Barreiro, seguindo viagem de manhã. A nossa autorização impunha-nos uma ida directa pós-concerto, mas dada a emoção e o cansaço de final de noite, optamos pela segunda opção.
.Desde que telefonássemos bem cedo a avisar o atraso, não deveria haver grande problema. Já eu, tendo encontro marcado com a sanita para a manhã seguinte, comecei a viver o espectro das perdas… Sabia que dali para a frente tudo poderia acontecer. Confiei na presença dos que me acompanhavam para solucionar qualquer contratempo que acontecesse.
.Por entre as voltas dadas pelo recinto, eis que me cruzo com o Sr. Presidente! Empurrado pelo Quintino, apercebo-me que daí a uns metros nos cruzaríamos com o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Isaltino Morais. Acompanhado de 2 (grandes) seguranças e de charuto na mão, e após se ter instalado entre nós um contacto visual, fez questão de desviar-se ligeiramente da sua rota, para me vir cumprimentar! Por vezes, há pequenos gestos que nos marcam. Que nos mostram a grandeza do ser humano. Que nos mostram que para lá de tudo, ainda existe sensibilidade e compaixão. Foi isso que senti naqueles 10 segundos de contacto visual, seguido de um cumprimento e umas palavras reconfortantes daquele homem. Chamem-me ingénuo. Porque estaria ele ali? Para se promover e dar visibilidade à força das suas iniciativas no seu concelho? Claro. Mas estaria em (permanente) campanha, soltando abraços e risos por toda a gente? Não me parece. Parece-me que, qual anfitrião da festa, me veio cumprimentar em sinal de reconhecimento pelo que é, para uma pessoa assim, ir para um ambiente daqueles…
.Depois de nos despedirmos do recinto, do Sérgio, do Duque e do André, para quem o dia seguinte era de trabalho, lá fomos rumo à porta e ao carro do Quintino, que estava mesmo ali!
.Nos 100m de distância entre a porta e o carro passamos por um cordão policial. Avaliavam quem passava com olhar autoritário e inquisidor. Ao abordá-los, quase um a um, revelam total desprezo pela situação. Até que um, situado numa das pontas, nos chama e, calmamente nos dá algumas directrizes. Teríamos de passar pelo “guichet” de perdidos e achados do recinto, e em caso negativo, recolher a participação numa esquadra da PSP e ir contactando a secção de perdidos e achados da esquadra mais próxima, a 80ª de Oeiras, pela probabilidade da proximidade. PSP 2 – Malta 0.
.No “guichet”, apesar da acalmia, dois agentes encontravam-se de plantão. Ao abordá-los, o Quintino recebe a novidade áspera e desinteressada de que, além de nada se encontrar por aqueles lados, tal participação não só seria desnecessária como já nem é emitida pela PSP, sendo que lhe restaria começar a tratar de novos documentos e rezar para que o seu BI não aparecesse nas mãos de um qualquer malfeitor. Duas possíveis explicações para este atendimento (des)personalizado: os (mal regulamentados/pagos) gratificados dos agentes de autoridade neste tipo de serviços; e o metro de “rastas” do Quintino! PSP 2 – Malta 1.
.Em descompressão lá fomos para o carro com a certeza de que nada mais havia ali a fazer. Ainda nos encontramos com mais pessoal de Albufeira, e por ali permanecemos mais um pouco, esperando que a grande multidão dispersasse e nos permitisse regressar à estrada.
.Entre conversas e paródia, comentava com o pessoal o ponto de desinteresse musical a que este tipo de espectáculos começa a ficar sujeito. Entre argumentos e contra-argumentos, tentava mostrar a minha teoria, dando exemplos de bandas, artistas e situações, que poderão demonstrar a verosimilhança da minha crença. Falava dos “da Weasel”, lembrando os velhos temas, os seus ideais e experiências, tudo exposto no poder lírico e musical que eram os seus concertos. Por oposição à fase Macdonalds, grandes festivais e tocar para “encher chouriços”…!
.Cheguei a pensar: “se estivesse aqui agora um dos seus elementos, havia de o interpelar e questionar sobre esta temática”. Não que a resposta seja difícil de imaginar…
.Mas eis que no meio da multidão que desaguava do recinto, e se encaminhava agora de forma lenta e ordeira no sentido dos lugares destinados ao estacionamento, vislumbro uma cabeça daquelas que se destacam das demais. Parecia um “deja-vu”, tal era a semelhança com ocasiões passadas, onde aquela cabeça também havia servido para me chamar à atenção!
.“Celso!”, “Grande Celso!”, exclamei eu. Era o Celso de Almada, meu velho conhecido dos tempos do parque de campismo! Amigo do Martins e da malta, com ele partilhei bons momentos, em tempos idos. Agora, numa outra fase da vida, com aquele saudoso grupo já desmembrado pelas vicissitudes da vida, voltava a encontrar o Celso, que, já sabendo do que me havia ocorrido, ficou extremamente feliz e surpreendido por me encontrar. O Celso vinha acompanhado do seu amigo “Jay”…dos “da Weasel”! Nada que me surpreendesse, uma vez que há muito tempo que era do meu conhecimento a amizade que ligava aquele grupo de malta a todos os elementos da banda Almadense.
.Livrou-se o “Jay” de uma aborrecida conversa sobre o estado da indústria musical dos nossos tempos, e ganhou o Celso um agradável encontro com alguém à muito desaparecido. Então, enquanto eu e o Celso púnhamos a conversa em dia, sujeitou-se o “Jay” a ali permanecer, entre um punhado de adeptos do seu som, distribuindo autógrafos e saudações!
.Foi um bom final de festividades… Seguindo toda a gente o seu caminho, também nós seguimos o nosso, rumo ao apartamento “XL” do Quintino, no Barreiro. Eram 5.30 da manhã, com o céu cor púrpura e temperatura quente, a corrida pelo asfalto da ponte 25 de Abril fez-se com sensação de liberdade e satisfação.


Foto3: Era esta a nossa vista a partir do palanque. Embora as imagens não o comprovem, este estava bem situado, permitindo uma boa visualização sobre o palco.


O regresso:

.Já no Barreiro, o pessoal acomodou-se e descansou um pouco.
.Temia que os meus intestinos me traíssem. Temia que o nosso atraso fosse alvo de punição pelo CMR Sul. Nesse sentido, liguei o despertador e a malta convenceu-se que a alvorada teria que ser bem cedo. Por volta das 8.30 da manhã a malta estava a pé e foi-se preparando, enquanto o Quintino já havia saído para tentar solucionar a questão dos documentos.
.Quando o Quintino regressou, pouco depois, desanimado e resignado, dizendo que não havia conseguido a declaração e demonstrando já desinteresse e vontade de abalar, eu insurgi-me e persuadi-o a voltar a tentar. Acontece que, na esquadra principal do Barreiro, não havia sequer sido atendido por esta estar cheia, sendo direccionado para a esquadra do Lavradio. Aí, o agente de piquete disse-lhe que tal declaração seria desnecessária por não substituir os documentos! Isso já nós sabíamos. Mas sabíamos também, que na falta da mesma, legalmente, ninguém reconheceria as pretensões do Quintino. Não havendo prova, de facto, em como os documentos haviam sido roubados! PSP 2 – Malta 2.
.Iniciamos o “2º round”. Viramos costas à casa do Quintino e iniciamos nova corrida pelas esquadras! De regresso à do Barreiro, o Quintino esbarrou novamente numa multidão que apenas permitiu ao agente que o recebeu, dizer-lhe que não tinha hipótese de o atender naquela altura… Resolvemos saltar a do Lavradio por esta ser avessa a participações/declarações de roubo! Fomos à da Quinta da Lomba. Depois de breves momentos o Quintino regressou ao carro, estacionado à porta da esquadra, para nos dizer que tudo estava bem, e que aguardava a impressão da participação. Voltou a entrar. O Cajó saiu do carro e após tomar um café num estabelecimento vizinho, entrou na esquadra para ver como iam as coisas. O tempo foi passando…até que o Cajó regressou para me dizer a mim e ao Tiago que algo não estava a correr bem com a impressão da participação. E o tempo foi passando…enquanto eu, o Cajó e o Tiagão ia-mos “fritando” ao sol de Verão, conversando sobre o ridículo a que esta situação estava a chegar, e apreciando quem passava. Após uma hora e meia e muitas entradas e saídas da esquadra, o Quintino lá veio com o assunto resolvido. Afinal parece que o agente que estava a fazer a participação de roubo não era muito entendido em informática! Tanta formação, tantos programas de software de gestão para, no final, ter que ser o Quintino a ensinar ao agente como usar o “Caps Lock” para alternar entre maiúsculas e minúsculas!!! Ultrapassado este problema com a substituição do dito agente pelo do turno seguinte, parece que a impressora da esquadra da Quinta da Lomba precisava, também ela, de mais formação. Resultado, o Quintino veio com o número da participação apontado num pequeno papel e com a promessa de que assim que possível, esta seria formalizada e enviada via fax para ele. O que veio a acontecer. PSP 2 – Malta 3!
.Com um substancial atraso lá nos fizemos à estrada rumo ao “reino dos Algarves”! Mais uma vez, a opção “estrada nacional” ficava fora de hipótese. Era já meio-dia quando o Tiago, na primeira estação de serviço por que passamos, teve a oportunidade de fazer a tal chamada de aviso para o CMR Sul. Escusado será dizer que já ninguém dispunha de bateria nos seus telemóveis. E o Quintino, já nem dispunha de todo, do telemóvel!
.A meio do regresso ainda houve tempo para mais um pequeno susto, neste caso pessoal. Ao passarmos pela zona de Alcácer, o habitual cheiro a estrume e compostos orgânicos invadiu o carro. De pronto pensei ter tido uma perda. Menos mal, já estávamos de regresso e a pouco tempo do destino final. Mesmo assim, resolvemos parar na próxima estação para ver se se confirmavam as suspeitas. O que deu para confirmar foi que mesmo que me encontrasse borrado, pouco ou nada haveria a fazer! Dispondo de casa de banho para deficientes, equipada com um fraldario, um lavatório e uma sanita, que poderia, mesmo assim, eu fazer, ainda que acompanhado por homens adultos, para me lavar convenientemente, limpar e voltar a vestir? É certo que hoje o à vontade com a situação é outro, mas desiluda-se quem pensa que o paraplégico pode fazer uma vida independente…

.“Com o Cajó a recuperar horas de sono, aproveitamos nós para constatar a confirmação inequívoca da possibilidade de obter prazer e interacção positiva com um ambiente de maiorias com corpos padronizados, e vivenciar novas experiencias sem complexos e com
total liberdade e espírito de amizade.” (Tiago Inácio)


.À chegada a São Brás com cerca de muitas horas de atraso, fomos recebidos somente com interesse, curiosidade e compreensão. Ficando em nós a sensação de que, como em tudo na vida, esta já ninguém nos tira!





Video 1: este pequeno excerto serve de pequeno vislumbre sobre o que foi a actuação dos Rage Against The Machine"...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

E de repente...

.E de repente passaram 13 meses de reabilitação. 13 Meses da minha vida. Tanto tempo… tanto tempo.
.Quão pesada se torna a pena a pagar ao cair numa armadilha assim! Serve todo este tempo para sarar uma ferida que jamais fechará. Para mostrar ao ser humano, que pelo facto de o ser, se pode afortunar de ter capacidade para se adaptar e, ainda assim, viver. Trata-se de um processo muito difícil de aceitar e receber. Muitos não o querem. E muitos, em situações ainda piores, não estão em condições de o quererem…
.Entrei no CMR Sul a 19 de Maio de 2008. Era o momento certo para a viragem. Encontrava-me fragilizado como nunca. Num momento de incompreensão irracional do meu próprio ser que me fazia muitas vezes não me querer reconhecer a mim próprio. Como se estivesse num estado de resignação vegetativa…
.Não me esquecerei daquele dia. A forma como o Algarve me recebeu 8 meses depois. Pelo canto da janela da ambulância ia vendo traços do percurso que me faziam saber onde estava, automaticamente transportando-me para memórias guardadas de tempos idos. O percurso dos ciprestes, naquela curta e estreita recta, que faz a entrada ao CMR, impressionou-me. E assim que abriram a porta traseira da ambulância, ao ouvir o som dos pássaros em Primavera, senti a calma e a leveza do ar no local e algo dentro de mim tranquilizou.
.Após consulta introdutória foi-me definido um plano de tratamento. Desde logo, a calma e serenidade do local, das instalações e do pessoal, foram factor notório. Confesso, que inicialmente, me senti algo aborrecido e melancólico, tal era a pacatez da envolvência. Depressa conclui que se tratava do cenário ideal para quem se queria entregar de fundo a um programa de reabilitação física.
.Como sempre, tardei um pouco a abrir-me o suficiente e a dar-me a conhecer mais profundamente, apesar de todo o carinho que desde o inicio recebi de toda a gente. No entanto, assim que fui travando conhecimento quer com os técnicos, quer com os doentes, a situação alterou-se drasticamente.
.Uns dias depois conheci a Directora Clínica do Centro no ginásio, onde não é raro encontrar médicos. Mostrou de imediato um interesse especial pelo meu caso (que pude confirmar, ser afinal, geral por todos os doentes). Foi determinante tal força e interesse, pois muitas das vitórias burocráticas que tenho conseguido frente à seguradora de trabalho e a nível geral, devem-se a ela. Verifiquei com o tempo, a forma dinâmica, pró-activa e humana com que esta directora dirigia uma Instituição Hospitalar tão importante para os doentes, como é um Centro de Reabilitação. Bem como a forma como se rodeava de pessoas de características semelhantes. Foi uma diferença abismal e um factor extremamente positivo na minha recuperação. Aliás, o corpo médico pela forma como se comporta e como trata e aborda os doentes, faz uma diferença fundamental!
.Os primeiros dois meses foram difíceis, a bexiga atravessava uma fase problemática, fazendo-me regredir para um processo de algaliação em drenagem livre, quando já me ia habituando às rotinas de algaliações intermitentes. Ainda por cima, tive vários episódios de perdas por extravasamento. Era frustrante andar de “saco” e ainda assim ter perdas! Esta situação condicionou-me extremamente. Para não falar da parte psicológica, impediu-me de usar a piscina e experimentar as técnicas de hidroterapia, desígnio a mim destinado desde o inicio. Ao contrário de Alcoitão, aqui, todos vão à piscina… À parte da bexiga, inexplicável e imprudentemente, criei uma ferida num calcanhar, ao fim de uns dias no Centro, que me valeram 3 meses de pé ligado, tratamento específico à ferida em questão, e tudo o que ela acarretava.
.Creio que os infortúnios dos primeiros tempos fizeram de certa forma adiar o inevitável. Desde o inicio que estava latente naquela equipa jovem, de enfermeiros e terapeutas, o espírito combativo e de incentivo, motivação e abnegação, de que tanto precisam este tipo de doentes. Foi quando a bexiga acalmou, graças à abertura e busca de alternativas pela equipa médica, e quando a ferida fechou, graças ao empenho e rigor da equipa de enfermagem, que eu comecei a sentir essa “raiva profissional” a tocar-me na pele.
.Tal era o trabalho dos profissionais que a meio do internamento eu já fazia coisas que havia visto, e julgado jamais ser capaz de fazer! Vitórias atrás de vitórias, entre o ginásio, a enfermaria, o gabinete de psicologia e o de terapia ocupacional, que me fizeram chegar a um nível de auto-controlo motor, fisiológico e psicológico, que me fizeram passar a ver, definitivamente, a vida com outros olhos. Pelo meio fui buscar a auto-confiança essencial para uma recuperação destas. Se as pessoas conseguissem imaginar o quanto se altera no processar de uma vida, ao enfrentar este tipo de mudança… fariam ideia do que uma recuperação a todos os níveis pode demorar, custar e doer…
.Depois de experimentada a água, enfrentados os demónios da sexualidade, de me preparar para a obtenção de postura e de integração social. Adquirido inúmeras habilidades motoras e de domínio da cadeira de rodas, graças a muitas horas de fisioterapia e terapia ocupacional. Depois de ter conseguido estabilizar os sistemas de treinos vesical e intestinal e sobretudo, ter aprendido a solucionar de formas alternativas, uma série de problemas que estes mesmos treinos me poderão levantar para sempre. Estava em Outubro, ao fim de 4 meses, preparado para uma alta que me devolveria pela primeira vez à realidade!
.Não descorando nenhum aspecto da minha alta, o Centro manteve-me internado mais um mês, para que as obras de adaptação de minha casa se concluíssem. Obras essas, uma das vitórias conseguidas, em grande parte graças ao empenho e dedicação da Directora Clínica do Centro, em representação dos direitos do doente.
.Embora acusando já um cansaço e um anseio pela “liberdade” que me faziam enfrentar os tratamentos de forma mais desleixada e tendo por vezes uma atitude demasiado ansiosa perante as situações, sempre fui tratado com condescendência e compreensão.
.Vários pormenores e lembranças me ficam, em particular, na memória. Mas posso resumir tudo a um sentimento mais amplo emanado por todas as pessoas daquele Centro no momento da minha saída. Amizade. Ver a forma como se despediram de mim, auxiliares da acção médica, enfermeiros, terapeutas, médicos… Todos eles tão importantes.
.Duas promessas ficam: eu voltarei, e jamais vos esquecerei.
.Tudo, desde o primeiro dia após o acidente, contou para eu ser o que sou hoje. Enfrentar a lesão medular como enfrento. Encarar a vida como encaro. E acreditar que posso melhorar em todos os aspectos.

.Mas cabe-me aqui um MUITO OBRIGADO ao CMR Sul.





Na foto: a maltinha do CMR! Guardados pelo Enfermeiro Joel, estão algumas das pessoas que conheci em situações de dificuldade. De alguns fiquei bom amigo. A todos, unido por um vínculo de cumplicidade e solidariedade únicos.